A Saga Afrofuturista – O Legado Negro - Cap 17
Aziza guiava a embarcação marítima da família real. Era semelhante a uma caravela, mas bem menor. De ponta a ponta, o navio mal alcançava os oito metros de cumprimento. Havia três cômodos, um para o rei e os outros para seus filhos. Uma dispensa com as provisões onde os subalternos preparavam as refeições e uma sala para as necessidades, que seriam jogadas ao mar em um penico. O barco tinha somente duas velas. Devido ao seu tamanho, poucas pessoas eram necessárias para tripulá-lo. O príncipe não era nenhum marujo condecorado, mas tinha uma dose de experiência. Velejou com seu pai algumas vezes e acompanhou algumas rondas escondidos.
A viagem agradava Serp. O intulo demonstrava sua satisfação. O trabalho de espionagem o deixou demasiadamente distante das águas. Sentiu falta do ar úmido, do cheiro do mar, do vento batendo em sua pele escamosa. Conteve a vontade de mergulhar, esperando o momento propicio. Navegavam contra o tempo. Deveriam chegar ao rio Congo antes dos vampiros prepararem o ataque.
Dume demonstrava seu desprazer em estar naquele barco. Detestava a companhia humana, especialmente ter de partilhar o ambiente com o irmão de seu algoz. Não ajudou em momento algum, deixando todo o trabalho pesado para os outros tripulantes. Além disso, kishis não gostam de mares, rios e lagos. Eles se higienizam as vezes, mas seu lado canino possui medo d’água.
Aziza levou provisões para três dias de viagem, caso bem racionadas. Tinha frutas, grãos, ovos, carne seca e um acarajé. Este último seria partilhado com Iansã. A preparação da refeição quase os atrasou. O rei ordenou que saíssem antes do alvorecer. O príncipe não descansou durante a madrugada, preparando o alimento com suas próprias mãos. Para ele, aquele bolinho de feijão fradinho frito no azeite de dendê era a coisa mais importante no barco. Garantiria bons ventos e proteção contra os perigos. O príncipe ofertou o acarajé em um alguidar enfeitado com camarões defumados e rodelas de cebolas regadas com mel e dendê. Por tradição, deveria ter feito em um terreiro ou bambuzal, mas a fé de Aziza superava locais físicos. Acreditava que alcançaria o axé em qualquer lugar que a yabá estivesse.
– Poderemos resistir a qualquer contratempo. – Falou Aziza após terminar seus cânticos.
– Esperai-vos que eu realmente acredite que um acarajé irá salvar-nos?! – Questionou Dume sarcasticamente.
– Iansã ajuda quem pede. Irá interceder por todos nós.
– E por que ela não impediu que milhares de makalas fossem levados daqui?!
– Cada um tem seu próprio orixá. E cada orixá tem seus motivos para agir como age. – Respondeu Aziza impacientemente.
– Tolice! – Retrucou o kishi.
– Aziza, – interveio Serp para evitar um conflito – agradeço-vos pelo que fizestes. Diferentemente de Dume, realmente me sinto mais protegido. Sempre estou disposto a ser agraciado pelas entidades acima de nós, independentemente de quais sejam elas.
– Não seguirdes nenhuma religião? – O humano estava curioso.
– Aziza… – O intulo inclinou a cabeça para a esquerda – Meu povo teve problemas em terras católicas, asiáticas e iorubás. As entidades pareciam não se importar ou serem impotentes. No fim, aprendemos a confiar somente em nós mesmos. Mas caso haja algum ser realmente capaz de salvar minhas escamas, eu o seguirei. Ainda não encontrei nenhum.
– Entendi. E enquanto a você, kishi?
– Eu odeio a humanidade e tudo que ela professa! – Permaneceu emburrado, sentado no guarda-corpo.
Os humanoides encheram duas caixas com carne. Mais de dez quilos! Para manter a comida em boas condições, cobriram os pedaços bovinos com muito sal. Na hora de comer, não se importavam com o excesso de sódio e tampouco ligavam para cozimento. O problema da dupla estava relacionado com a falta de controle. Do modo que se esbaldavam, passariam fomes antes de alcançarem o rio.
Durante boa parte da viagem, o céu permaneceu limpo e a brisa permanecia suave, entretanto, aos poucos, o vento aumentava sua força. Ondas agitavam o mar e nuvens escuras surgiram, anunciando uma tempestade. O kishi abandonou o convés para se esconder em algum cômodo do barco. O intulo sorriu alegremente ao mesmo tempo em que abriu os braços esperando que a chuva agraciasse seu corpo. A bombordo, a alguns quilômetros do navio, uma descarga elétrica sobre o mar. O som avassalador do trovão estremeceu as estruturas de madeira. Dume tiritava os dentes. Aziza e Serp se distraíram com o raio. Não viram o momento em que o acarajé desapareceu. O humano acreditava que Iansã recebeu a oferenda, o intulo pensava que o bolinho foi jogado para fora do barco. Sem poderem provar nada, estranharam o modo repentino em que a tempestade desapareceu.
As horas seguintes foram marcadas por muita tranquilidade. O mar estava calmo e o céu sem nuvens. Navegando longe da costa, raramente viam outra embarcação. Quando viam, a primeiro momento, temiam ser alguma nau de guerra, entretanto, quando estes se aproximavam, mostravam-se como barcos pesqueiros.
– Aziza! – disse Serp apontando para cima – Um pássaro!
– E qual o problema nisso? – estava curioso com o pavor do intulo.
– É muito belo – naquele momento, o príncipe descobriu Serp era muito romântico, porém, aquela ave não era como as outras. Caso o kishi não estivesse escondido, sentiria o cheiro naquele bicho. Ela exalava o odor característico dos sugadores.
Subaga era uma criatura poderosa. Herdou muitas habilidades de seu pai que se mesclaram as de sua mãe. Enquanto o genitor se transmutava em vaga-lume, a filha se moldava em pássaro e leão. Não sendo o bastante, se comunicava com diversas espécies de aves. Isso ampliava a visão de Obayifo, já que sua filha direcionava os animais voadores para onde fosse necessário. A vampira ordenou que Subaga enviasse algumas gaivotas, mas ela era muito curiosa. Queria ver com seus próprios olhos a união de seres que pretendiam enfrentar seus pais. Achou muito engraçado. Os humanos, acreditava ela, quando desesperados, recorrem a qualquer recurso para não perecerem.
A vampira pensou em acabar com eles naquele momento. Eram alvos frágeis que não tinham para onde fugir. Alimentos oferecidos em bandeja, apenas esperando para serem consumidos. Subaga queria atacar, com toda a força de seu ser, mas a aura protetiva do barco a impediu. Ela não sabia o que era, nunca sentiu algo semelhante em sua vida. Tinha o pressentimento de que algo aconteceria quando investisse contra seus alvos. Sua fome voraz conflitava com sua aflição. Frustrada, os acompanhou por alguns momentos. Ao cair do sol, retornou ao continente. Alimentar-se-ia de outros seres.
Em terra, Obayifo testemunhou através dos olhos de sua filha. A feiticeira compreendeu o receio de Subaga. Os vampiros raramente sentem medo, porque não encontram adversários à altura. Mesmo o sol, com seus poderes, não afeta toda a variação da espécie, entretanto, no mundo vasto, não é incomum encontrar seres que podem fazer frente ao seu poder. Na Europa houve lupinos, os intulos e principalmente o ferreiro. Na África, o caminho do mar e seus segredos…
– Eu senti o medo de nossa filha. – Falou Obayifo seriamente.
– E o que foi capaz de assustar nossa Subaga? – Perguntou Adze rindo sarcasticamente. O excesso de confiança o tornou muito desprecavido. Não levava as coisas a sério, acreditava que seu poder era o suficiente para escarnecer de tudo.
– O príncipe de Dongo viaja ao rio Congo para acompanhado de um intulo e um kishi…
– E daí?! Criaturas fracas! – Interrompeu Adze.
– Deixe-me concluir! – A iyámi estava incomodada – Aquele barco está protegido por uma das filhas “daquela” mboa…!
– Entendo… – O vampiro pareceu um pouco mais sério, mas não perdeu sua serenidade – Achei que os orixás haviam abandonado esse continente. Enfim, eu posso ter com ela, caso seja necessário.
– Cuidado, meu marido. Seja-vos mais prudente. Não precisamos de outros inimigos nesse momento. Podei-vos fazer algo mais favorável à nossa causa.
– O quê?
– Encontrastes um kishi na estalagem e agora um kishi está a viajar com o príncipe. Essas criaturas estão a serviço do rei! Devei-vos falar com vosso camba ngueto para cuidar-se com essas criaturas. Se possível, mate-as!
– E os intulos?
– Estejas atento com eles. Jamais abaixe vossa guarda!
– Como quiserdes, minha esposa. E enquanto ao barco, irás permitir que os tripulantes encontrem o Ninki Nanka?
– Jamais! Devemos garantir que o barco não chegue ao dragão. Ele deve continuar neutro. Os popobawas são criaturas vis, que dificilmente serão percebidas pela yabá. E se forem, só preciso garantir que destruam a embarcação.
– Certo, Obayifo. Farei como me recomendastes. Não me espere tão cedo. Vou ajudar Francisco a convencer os imbangalas a iniciar um novo ataque.
Desde a partida do barco, muitas horas se passaram. Os aventureiros combinaram entre si os horários de vigília noturna. Aziza foi o primeiro a prestar atenção aos arredores de sua embarcação. Após o fim de seu turno, foi dormir tranquilo. Serp estava terminando o seu período, quando Dume subiu ao convés.
– Ainda não é vosso horário. – Falou o intulo.
– Já não consigo descansar. Em verdade, não adormeci durante a noite. Nós usamos esse horário para caçar ou nos divertir.
– Compreendo… Sexo e predação. Conheço vossa fama.
– Eu não sei nada de sua espécie. Podes me contar um pouco sobre vós?
– Com prazer, entretanto, gostaria de saber alguma coisa. O príncipe Aziza está ao nosso lado. Por que és tão hostil com ele enquanto és amigável comigo?
Dume respirou profundamente antes de responder.
– Os humanos são seres monstruosos. Diferentemente dos outros animais destas terras, não pelejavam apenas pelos recursos. Lutam para exterminar tudo que acham inferiores. Os nguetos exterminam os makalas e os makalas estão a se matar ou a caçar criaturas que desprezam. Estou aqui, porque o novo rei nos cercou em nossa caverna e nos obrigou a isso. Pode comprar minhas cambas com refeições abundantes, mas aquele aldrabão tirou nossa liberdade!
– E como ele vos encontrou?
– Ele trouxe descalabro à uma kishi apreendida por Aziza! A torturaram e a agora o rei está a partir nosso braço. Juro-vos que quando isso acabar, eu hei de ter minha vingança. – Dume estava muito irritado. Quando terminou a narrativa, suas unhas afundaram na madeira do navio – Agora, a história de vosso povo.
– Por onde começar meus mambos?… – Serp refletiu por alguns instantes – Bem, eu e boa parte de meus companheiros viemos da Europa. Antes disso, falavam sobre longínquas terras asiáticas. Na península ibérica os lupinos e vampiros se digladiavam constantemente. Depois, os intulos, vindo muitas vezes da França, acabaram se envolvendo no conflito e no século dezoito, chegamos ao ápice de nossa guerra paralela.
– Quero detalhes! – Implorou Dume empolgado.
– Não presenciei nada, mas os poucos que estiveram lá falaram que existiam vampiros muito mais poderosos que os daqui. Capaz de controlarem os próprios fenômenos da existência, entretanto, entregaram-se tanto às trevas, que eram fracos ao serem expostos ao sol. Os tugas diziam que nada poderia exterminar as criaturas enviadas por Lúcifer. Então, enviaram-nos ao Brasil.
– E os lupinos?
– Estes possuem aparência humana quando não são expostos ao sol. Podem ocultarem-se com facilidade, mas devido ao hábito noturno, foram confundidos com vampiros. Sendo mais simples de se matar, fugiram da perseguição lusitana. Muitos fugiram para o Brasil, Estados Unidos ou Canadá. Dizem que alguns vieram para África, mas não comprovei o fato.
– Então, os sugadores de Angola vieram desse Portugal?
– Também não posso confirmar. Ouvi dizer que sendo nguetos, preferiram irem ao Brasil do que se macularem no meio de makalas, mas nem todos os vampiros são como os popobawas. Alguns possuem aparência muito humana, como aquele que matou a kishi na estalagem! – A raiva de Dume aumentou – O meu soberano me contou que existem alguns seres que podem serem absolutos, como aquele que perturbou as águas…!
– E o que se sucedeu com este vampiro?
– O soberano contou que a ousadia desse vampiro irritou a rainha do mar. Ninguém sabe o que aconteceu, mas ele nunca foi visto novamente. – O kishi observava estarrecido. – Camba Dume, está em minha hora de repousar. Conto com vossa vigília.
Serp desceu para sua cabine. Dume permaneceu silencioso, alternando seu olhar entre as estrelas e as chamas dos lampiões do barco. O som das águas ressoava suavemente em seus ouvidos e lhe passava uma sensação de paz. Era a primeira vez que o kishi se sentia feliz desde que encontrou o povo de Dongo. Mesmo quando se alimentava de carne fresca, o amargor da coerção refletia em suas refeições.
– E esse cheiro?… – O focinho da hiena tinha um faro excepcional. Captou as partículas trazidas no vento, mesmo estando a centenas de metros das criaturas que se aproximavam. Eram de fato muitas! Talvez vinte ou um pouco mais. Elas cheiravam a sangue fresco.
Dume estremeceu. Viveu muito tempo e aprendeu a reconhecer o odor da morte. Era o mesmo cheiro que atraía os rompos, hienas e outros comensais. Entretanto, estava habituado com animais mortos. Aqueles estavam claramente em movimento. Vinham rapidamente dos céus. Sugadores de alma…
– ATAAAAAAAAAQUE! –Gritou desesperadamente. Sem que ninguém subisse ao convés, chamou-os novamente – ATAAAAAAAAAAAAAQUE! – Serp não entrou em sono profundo. Despertou assustado e reconheceu a voz do kishi. Correu para a porta de Aziza e a esmurrou algumas vezes.
– O que está a acontecer?! – O príncipe acordou mal-humorado.
– Temos macas no convés! Pegue vossas armas! – Serp subiu apressadamente em socorro do amigo. Ao se juntar com Dume, esmoreceu ao ver aquelas coisas voando ao redor do barco. Popobawas eram criaturas humanoides, mas tinham o rosto misturado com o de um morcego. Possuíam somente um olho e os dentes eram extremamente afiados. Um par de asas substituía o par de braços. O “odor de morte” estava relacionado com as bactérias que viviam sobre a pele vermelha. Trissavam antes de atacar.
Aziza surgiu com suas armas em mãos. Portava um escudo, uma lança e uma espada na cintura. Tentou dizer algo, mas as palavras não saíam de sua boca. O estômago revirava, o medo dos sugadores era indescritível. Não tremeu diante dos homens, mas apavorava-se ao encontrar criaturas sobrenaturais. Perceptível como desejava eliminá-las quando as encontrava. Seu ódio era fruto de seu medo.
– Estejam prontos para combater… – Disse Serp tomando a liderança do trio. Ele percebeu que o príncipe estava fora de si. – Não deixem que eles vos mordam.
Os popobawas eram assistidos por Obayifo. A iyámi controlava a maior parte deles. Estava ciente de que nenhum orixá iria intervir caso ela não investisse sobre o príncipe diretamente. Decidiu direcionar suas marionetes sobre as velas e as criaturas atacavam ferozmente, rasgando o tecido com suas mandíbulas poderosas.
– NÃÃÃÃÃÃÃO! – berrou Aziza vendo o movimento dos sugadores. Passado o estado de choque, sempre pronto para batalhar. Ele arremessou a lança com toda sua força. A arma transpassou a cabeça de um popobawa. A criatura tombou sem vida. Em seguida, o príncipe jogou o escudo em suas próprias costas e escalou o mastro para enfrentar aquelas bestas aladas.
Por mais que se esforçasse, o humano não escalava velozmente. Estava nítido a diferença entre ele e Serp. O intulo arrancou a lança da cabeça do popobawa morto e subiu rapidamente. Deslocava-se pela madeira e pelo tecido ao mesmo tempo em que afugentava os vampiros com sua arma. Não conseguia acertá-los em cheio, causando no máximo escoriações superficiais. Para a sorte da dupla, Dume deixou seu lado bestial guiá-lo no conflito. O kishi preferia a morte do que cair no mar. Assim, o medo aumentou suas forças e espaireceu a ferocidade da hiena. A criatura escalou de costas, daquele modo bem grotesco em que os kishis estão acostumados. No momento em que um vampiro entrou no alcance das presas, a hiena saltou sobre ele, sem se preocupar com o impacto da queda.
– GRRRRRRRRR!!! – Dume rosnou sobre o corpo do popobawa e o mordeu no pescoço. Toda sua raiva foi descarregada em sua mandíbula. O vampiro urrou brevemente, antes de morrer com seu sangue escorrendo entre os dentes da hiena.
Instintivamente, os monstros que não eram controlados pela feiticeira se arremessaram sobre o kishi. Dume percebeu antes de ficar completamente cercado. Correu na esperança de se livrar de seus predadores, entretanto, os popobawas voavam mais rápido do que ele conseguia correr. Um vampiro surgiu diante da hiena e se tacou violentamente. Dume conseguiu desviar, mas não era rápido o suficiente para evitar o ataque seguinte. Para sua sorte, Aziza viu tudo de longe e antecipou-se à investida das bestas aladas. Desceu do mastro e protegeu o kishi com seu escudo. Mesmo sendo um homem caenche, a força do golpe quase o tirou do lugar, mas sem dar tempo a outra investida, sacou a espada diretamente no coração do popobawa. A criatura permaneceu gritando no chão.
– São muitos…! – Reclamou Aziza tendo que se defender de três criaturas que tentavam comê-lo. Dume olhou para trás e sentiu que deveria proteger o humano. Não porque estivesse sendo coagido, mas porque o guerreiro se arriscou para salvar sua vida. Tornou-se uma questão de honra e débito. A hiena nunca acreditou que lutaria tão bravamente para salvar o que até então era seu inimigo.
Aziza viu o vulto de Kishi saltando sobre sua cabeça. Assustou-se pouco antes de respirar aliviado. Dume mordeu o popobawa com tanta violência, que poucas dentadas foram suficientes para abrir um buraco na cabeça do vampiro.
– Obrigado… – Um adversário a menos era o que o guerreiro precisava. O príncipe afastou um vampiro com a força do braço por debaixo do escudo. Em seguida, esquivou-se do segundo e decepou a cabeça do mesmo. Rapidamente, avançou sobre o primeiro atacante e o finalizou com a mesma precisão. Enquanto isso, Dume se digladiava com outro monstro. As criaturas exibiam um espetáculo assustador, em que ambos os monstros tentavam se morder ferozmente. O que tivesse êxito, sairia vencedor.
No topo do mastro, Serp não conseguiu impedir que os vampiros rasgassem as velas. Os buracos estavam em todas as partes. Seria impossível velejar daquele jeito. Frustrado com sua falha, decidiu inteirar-se no combate. Deslizou pela madeira até que seus pés tocassem o convés. Ao ver seus aliados cercados, correu em direção aos popobawas. Atacava com a lança, sem se limitar ao uso da ponta metálica. O intulo aproveitava toda a extensão da arma e a girava rapidamente, afugentando as criaturas a cada golpe.
Tomados pelo furor da batalha, continuavam lutando. Defendiam-se bravamente. Matavam poucos vampiros, mas conseguiam evitar que eles os ferissem. O príncipe era mestre na espada e escudo, Serp usava a flexibilidade de seu corpo para aumentar o alcance de seus e Dume não tinha técnica, mas era o mais selvagem de todos, esquivava-se e mordia, mantendo o ritmo durante todo o combate.
– Matem-nos… – Ordenou Obayifo aos popobawas.
Ninguém percebeu até ser tarde demais, mas alguém esbarrou em um dos lampiões. O líquido inflamável foi espalhado pelo convés, sendo seguido pelas chamas quem em pouco tempo viraram labaredas. Tudo aconteceu de modo muito repentino. Dois vampiros foram apanhados pelo fogo. Gritavam ao mesmo tempo em que fugiam com o corpo queimando. As labaredas engoliram todo o barco rapidamente. Não levou mais do que três minutos para que o convés virasse um inferno.
– PARA A ÁGUA! – Berrou Serp desesperadamente. O intulo tentou se atirar em alto mar, mas as os popobawas não davam trégua. Talvez fosse o controle da feiticeira ou a pura bestialidade, contudo, não recuavam diante do calor das chamas.
– Iansã… – Disse Aziza com a voz triste enquanto segurava o golpe de um agressor.
– Esqueça vossas fantasias! Vamos fugir! – Protestou Dume.
Por mais que lutassem, não conseguiam evitar o ataque incessante. O calor aumentou o desgaste dos guerreiros. A alta temperatura elevou o ar ao nível de causar queimaduras nas vias aéreas. Os olhos estavam semicerrados e o cansaço os dominou. O fogo afetou a espada e o escudo de Aziza. O metal do material queimava sua carne, mas ele manteve-se determinado. Estava disposto a morrer com armas em mãos, como o rei N’Golo, entretanto, não era sua hora…
Obayifo estava se divertindo com aquilo. No fim, a coisa podia ser resumida a um experimento. Os olhos da iyámi brilharam com o que veio a seguir. As nuvens se formando nos céus, os primeiros raios sucedidos pelos trovões, a pesada chuva acalmando as chamas da embarcação, os ventos furiosos que agitavam o mar. Mesmo a distância, a vampira conseguiu enxergar o que ninguém via…
Uma mboa negra, com cabelos crespos trançados que formavam um coque no meio da cabeça. Usava uma tiara dourada com véu sobre o rosto e as orelhas carregavam um par de brincos. Se alguém visse seus olhos escuros, perceberiam a fúria crescente. No pescoço, um colar dourado, assim como os braceletes em seus braços e pulsos. Usava um longo vestido vermelho que balançava no ritmo do vento. Em sua cintura, uma espada prateada e um eruexim. Iansã!
A yabá lançava sua ira sobre aquelas criaturas profanas. Se alguém dentro do barco olhasse em direção horizonte, não veria mais que uma silhueta borrada, entretanto, Obayifo tinha seus próprios recursos mágicos. Ela enxergava a guerreira claramente. Mais do que isso, teve a sensação de ser observada da mesma maneira. Iansã, olhou diretamente no olho de um popobawa. Sua visão parecia ir muito além do corpo físico da criatura. A vampira teve a sensação da yabá encara-la a poucos centímetros de seu rosto.
– Achas que tenho medo de ti, mboa imunda? – Perguntou Obayifo usando um tom extremamente desafiador.
A guerreira ignorou a ousadia da vampira. Por mais que fosse impulsiva e não recusasse uma batalha, focou toda sua atenção no seu protegido. Lentamente, levantou o braço direito com a mão completamente aberta. Mirando no barco, deslocou o ar em direção ao mesmo. A força dos ventos formou uma onda que cresceu exponencialmente e lançou a embarcação em direção ao continente. Com exceção de Aziza, a tripulação creditou como pura obra do acaso. Somente o príncipe sabia que a tempestade os salvou graças a misericórdia da senhora das tempestades.
O turbilhão da natureza os desacordou. Por intervenções divinas, eles desembarcaram sem se afogar. Estavam desacordados devido ao cansaço extenuante da batalha que sobreviveram e despertariam com o sol sobre suas faces. Nenhum deles viu a fúria de Iansã. Quando o barco se afastou, a yabá sacou sua espada. Cada golpe emanava o brilho de um raio e o som de um trovão. A força de seu braço despedaçava os popobawas.
Obayifo observava o poder de sua mais provável adversária, pulando entre as mentes das marionetes que restavam. Subestimou a yabá. Admitiu isso para si mesma ao reconhecer que ela era uma combatente à altura. Talvez, estivesse no mesmo patamar do Ninki Nanka. No final do conflito, a vampira sentiu-se aliviada por estar milhares de quilômetros distante. Mais do que isso, a feiticeira, líder dos vampiros e terror dos angolanos… Estava tão aflita quanto Subaga.